A partir de hoje a Voz Nativa,passa a contar com um novo colaborador o jornalista Walter Ferreira ,que irá contribuir com reportagens culturais e comentários dos lançamentos da 7ª arte:
O mais recente projeto do cineasta norte-americano Martin Scorsese, “A Invenção de Hugo Cabret”, conta a história de um órfão que vive clandestinamente na Estação de Trem de Paris. Com a ajuda de uma garota excêntrica, ele busca a resposta para um mistério que liga o seu pai a um boneco de metal e a um senhor idoso dono de uma loja de brinquedos.
O pai de Hugo, um jovem relojoeiro, antes de morrer num incêndio o iniciara no mesmo oficio. O pequeno usa de suas habilidades e ajusta os relógios da estação de trem. O local tem uma arquitetura muito peculiar: por trás das paredes há estreitos corredores de metais entrelaçados, formando figuras geométricas misturadas a grandes estruturas mecânicas, que lembram o funcionamento de uma máquina.
Em seu quarto improvisado, o garoto mantém o boneco de metal que herdou e cujo funcionamento depende de uma chave em formato de coração.
“A Invenção de Hugo Cabret” começa empolgante em seus primeiros minutos de exibição. Com a técnica do 3D as imagens impressionam. Porém, até ali, as informações só situam o espectador pagante de que o “produto” já valeu ter saído de casa, que as tais 11 indicações ao Oscar anunciadas no cartaz não são “lorota” e que o divertimento vai ser garantido. O que assusta é vincular a produção ao nome do cineasta Martin Scorsese. Logo ele, que nunca teve uma relação muito estreita com a Academia de Hollywood, e menos ainda com intérpretes infantis.
Scorsese revolucionou o cinema norte-americano se apropriando da violência de maneira bastante peculiar, imprimiu uma naturalidade propositalmente amoral — mas nunca desnecessária — à alma de seus personagens, estejam eles ligados ao mundo do crime ou não.
Na película, que entra para a segunda semana de exibição no Estado, o enredo faz lembrar um clássico familiar spielbergniano. Pelo menos num primeiro momento. Há quem diga que Scorsese, o homem por trás de projetos bem adultos (!) como “Táxi Driver” (1976), tenha se rendido de vez à máquina de Hollywood. É bem verdade que vários daqueles signos que lembram o pai de “E.T” se fazem notar, mas é só prestar atenção aos detalhes e logo fica evidente quem de fato é o progenitor desta criança chamada Hugo Cabret.
Em posse mais uma vez da batuta — ou seria do bisturi? —, o que interessa é que lá está ele conduzindo mais uma vez o espectador, só que agora pelo olhar de outro protagonista... não mais o de um De Niro imerso num calvário psicótico delirante. Aliás, cabe aqui uma melhor relação entre o desprotegido Hugo e o personagem de uma outra obra-prima de Scorsese, o aristocrata Newland Archer (Daniel Day-Lewis) de “A Época da Inocência” (1993).
O filme que traz o consagrado ator britânico como centro é um dos projetos mais pessoais da carreira do diretor ítalo-americano, e também é conhecido como o mais esnobado pela Academia de Hollywood, mesmo se tratando de um romance de época, gênero que eles adoram. Apesar da riqueza na composição dos detalhes e da excelência dramática de seu trio de atores principais (Day-Lewis, Pfeiffer e Ryder), das cinco categorias a que concorria, levou a melhor apenas como figurino.
Na película adaptada da novela de Edith Warton, a quatro mãos com a colaboração do próprio cineasta, o personagem de Daniel Day-Lewis é um advogado integrante da alta sociedade nova-iorquina da década de 1870. Sufocado pela hipocrisia que envolve aquele universo, ele aspira viver uma vida apaixonante, vê esta possibilidade no reencontro com a condessa Olenska (Michelle Pfeiffer), uma bela mulher pouco ligada às convenções, e que acabara de voltar da Europa. No entanto, Archer fica noivo de May Weeland (Wynona Ryder), jovem socialite e prima da condessa.
“A Época da Inocência” é um romance onde não há gângsteres ou equivalentes, pois o tipo de violência que Scorsese se predispôs a mostrar tem outra natureza. Não há uma gota de sangue, mas diante da recusa de sua amada, ou exposto num momento de fragilidade diante de seus algozes, a expressão de Day-Lewis é o próprio retrato da dor. Scorsese parece estar mais preocupado em mostrar as várias formas que a “brutalidade” pode tomar. Sendo assim, mais especificamente em seus filmes de época, ele não se furta a sacrificar os protagonistas, a exemplo do que faz no novo “A Invenção de Hugo Cabret”, mas com um adendo. Neste último, há um final redentor.
O advogado Newland Archer passa os quase 138 minutos do filme de 1993 tentando ir atrás de seu ideal romântico num jogo de gato e rato. Sob a ótica do famoso diretor de “Os Bons Companheiros” (1991), Hugo Cabret também come o pão, ou seria croissant, que o diabo amassou? Ele vive fugindo do guarda da estação (Sacha Baron Cohen) para não ser pego e, apesar de lá pelas tantas arrumar uma namoradinha (Chloë Moretz), vive sendo desacreditado pelo dono da loja de brinquedos da estação com quem tem uma forte ligação — a subtrama que está fazendo a cabeça de dez entre cada dez cinéfilos.
As semelhanças entre os filmes “A Época da Inocência” (1993) e “A Invenção de Hugo Cabret” (2011) não se limitam apenas às questões de ordem “semântica”. Não por coincidência, o diretor, como em vários de seus filmes, dá o ar da graça. Mas, em Hugo ele se repete como figurante e aparece como fotógrafo, assim como fez no filme com Day-Lewis e companhia. Na película mais recente, Scorsese também utiliza um pequeno trecho da música originalmente composta por Elmer Bernstein para a produção de 1993.
Em “A Invenção ...” a lógica que condiz com a reputação dos maiores mestres da sétima arte é perceptível. O casamento da grande habilidade e domínio sobre o conteúdo com a forma, neste caso, a tecnologia 3D salta aos olhos da platéia em cada plano. Imaginem Hitchcock em posse do recurso da terceira dimensão?
Até 2007, a Academia de Hollywood sempre demonstrou uma certa incompreensão quanto à intelligentsia fílmica de Martin Scorsese. Pouco importaram as muitas críticas contrárias, naquele ano os votantes pareciam ter finalmente se rendido e “Os Infiltrados” (2006) — que não é um legítimo exemplar da filmografia do cineasta — levou três das cinco estatuetas a que estava concorrendo. Melhor Filme, Diretor e Montagem.